A violência contra a mulher é mostrada de forma particularizada, dificultando um entendimento da mesma como um problema social de grande proporção
Os meios de comunicação podem desempenhar um importante papel no debate público de problemas sociais ao selecionar, hierarquizar e estimular a discussão de alguns temas. Com isso, também podem proporcionar mudanças de comportamento, ajudando no combate a preconceitos e estereótipos, além de contribuir para a efetivação de políticas públicas que melhorem algumas situações, como no caso da violência contra a mulher.
A violência contra a mulher é um assunto cada vez mais presente nos noticiários de TV, rádio, revistas, jornais e internet. Segundo a pesquisa “Imprensa e agenda de direitos das mulheres: uma análise das tendências da cobertura jornalística”, realizado pela ANDI – Comunicação e Direitos e pelo Instituto Patrícia Galvão, o tema da violência contra a mulher é o mais comum em relação a dois outros observados. Em uma amostra de jornais impressos brasileiros de circulação nacional e regional analisada, a violência contra a mulher representou 63% das matérias, trabalho e ocupação, 18,9%, e poder político e decisão, 17,8%.
A princípio um ponto positivo, é interessante ressaltar a análise da pesquisadora Juliana Doretto, uma das responsáveis pela interpretação da pesquisa. Para ela, “a preponderância das pautas sobre a violência contra a mulher vai ao encontro da hipótese de que este é um tema mais frequente na mídia, não apenas por sua importância social, mas também pelo aspecto sensacionalista que com frequência desperta. A espetacularização do crime pode ser uma forma de atrair leitores e aumentar as vendas, sobretudo entre os jornais regionais”.
Segundo a pesquisa, o tema é notícia nos seguintes casos: quando ocorrem casos reais de violência, em especial se for uma agressão cometida com motivação passional e extrema violência; uma mulher é agredida por um homem famoso; acontecem abusos sexuais de criança; uma mulher é condenada à morte por apedrejamento; vai a julgamento um acusado de assassinato de ampla repercussão; são presos integrantes de quadrilha que traficava mulheres e meninas para prostituição no exterior; é procurado ou preso um estuprador ou serial killer, entre outros.
Em bem menor proporção, a temática da violência de gênero também é notícia quando é divulgada alguma pesquisa com números impactantes, a exemplo de dados sobre denúncias à Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180; escassez de serviços de atendimento como Delegacias de Mulheres e Casas Abrigo; aprovação de leis sobre o tema; inauguração de um centro de atendimento ou quando uma autoridade toma medidas ou deixa de tomá-las com base na Lei Maria da Penha.
Questão de polícia e individual
A presença de abordagem policial que acaba resvalando no policialesco ainda impera na cobertura da violência contra mulheres, constata a pesquisa. Isso é um problema, porque a cobertura policialesca carece de contextualização e problematização.
Outra característica da cobertura é a individualização dos casos. “Esta é uma tendência do jornalismo atual, especialmente em temas que envolvem dramas humanos. Fatos ou histórias que retratem um caso real geralmente facilitam o entendimento de questões complexas por parte do leitor. Contudo, vale ressaltar o desequilíbrio entre o foco das matérias, que se limita ao individual – caso pessoal e/ou familiar –, e a dimensão pública do problema, que exige respostas de diferentes instâncias do Estado – Executivo, Judiciário, Ministério Público – e da própria sociedade”, assegura a análise dos dados feita pela jornalista Marisa Sanematsu.
Para ela, “mesmo após a Lei Maria da Penha ter entrado em vigor, a imprensa parece estar distante de abordar a violência contra as mulheres como um fenômeno complexo, multidimensional, e que, portanto, requer políticas públicas amplas e articuladas nas diferentes esferas, como educação, trabalho, saúde, segurança pública e assistência social”.
Em 80% das matérias analisadas, não são apresentadas denúncias, a legislação existente, como a Lei Maria da Penha, acordos e convenções internacionais cujo Estado brasileiro é signatário, nem as causas, muito menos soluções para o problema.
Um maior investimento da imprensa em reportagens, entrevistas com especialistas, artigos de opinião e editoriais ajudaria no entendimento das razões que levam à violência de gênero, até porque, segundo Sanematsu, a mídia é um espaço de debate e também de pressão, podendo ajudar a melhorar os serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência, no cumprimento da Lei Maria da Penha e em uma mudança cultural.
Outras características encontradas no trabalho jornalístico foram pouca voz dada a ativistas de movimentos sociais e especialistas da área acadêmica; rara menção a tipos de violência como a lesbofobia e a violência contra mulheres negras; ausência do agressor como foco central da notícia – como este se comporta frente à agressão, diante dos filhos, o que tem sido feito para deixarem de praticar tal crime ou seja penalizado –; os casos de impunidade; os desafios encontrados por profissionais de Direito e da Justiça na implementação da Lei Maria da Penha; as dificuldades das mulheres em denunciar nos serviços especializados. Ressaltando outra grande omissão: 96% das matérias não mencionam os serviços de denúncia ou atendimento existentes para a mulher vítima de violência, como o Ligue 180 e Delegacias de Mulheres.
Comparação internacional
Para conhecer uma outra realidade, o Jornal Mulier entrevistou o pesquisador Wladimir Cerveira de Alencar, bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca, na Espanha, membro do Centro de Estudos da Mulher na mesma instituição (CEMUSA). Em sua tese “Análise de discursos sobre a violência contra a mulher no Brasil e Espanha”, ele analisou a maneira como a imprensa escrita no Brasil e na Espanha aborda a violência contra a mulher, baseado em todas as notícias relativas a este tema publicadas no jornal “Folha de S. Paulo” e “El País” durante o período compreendido entre 2008 e 2010.
Segundo Alencar, uma das principais conclusões confirma o pouco destaque dado pela imprensa brasileira à questão da violência contra a mulher. Apenas casos mais famosos como, por exemplo, a morte de Eliza Samudio, a mando do goleiro Bruno, merecem mais atenção e espaço nos meios, justamente pela notoriedade de uma das partes envolvidas. “A violência cotidiana, envolvendo cidadãos comuns, e que esteja fora da possibilidade de exploração através de espetáculo midiático (como no caso da jovem Eloá), não recebe destaque adequado e, quando é abordada (poucos casos aparecem), recebe uma conotação normalmente restritamente policial e extremamente resumida (relega ínfimo espaço dentro do jornal), apenas descrevendo os fatos (muitas vezes sangrentos), parecendo mais ser um documento policial do que uma notícia jornalística”.
A imprensa denominada de massa, como no caso do jornal “Folha de S. Paulo”, com maior tiragem no Brasil, “até o momento não reconhece a importância da difusão pública de casos de violência contra a mulher como fenômeno social”, de acordo com o pesquisador. Além disso, “não agregam a essas notícias informações relacionando a morte de uma mulher por seu companheiro com a cultura machista e patriarcal brasileira. Em outras palavras, não explica aos leitores o que é a violência contra a mulher e as razões para sua ocorrência e tampouco incluem dados sobre as ferramentas de proteção existentes contra a violência de gênero na lei e demais políticas públicas de amparo às vítimas. Em suma, não se utiliza a notícia como instrumento de denúncia social quando se trata de casos de violência contra a mulher”.
Entenda como os meios de comunicação retratam a violência contra a mulher
4 de março de 2015 6 Comentários »
Jornal Mulier – Março de 2013, Nº 110
A violência contra a mulher é mostrada de forma particularizada, dificultando um entendimento da mesma como um problema social de grande proporção
Os meios de comunicação podem desempenhar um importante papel no debate público de problemas sociais ao selecionar, hierarquizar e estimular a discussão de alguns temas. Com isso, também podem proporcionar mudanças de comportamento, ajudando no combate a preconceitos e estereótipos, além de contribuir para a efetivação de políticas públicas que melhorem algumas situações, como no caso da violência contra a mulher.
A violência contra a mulher é um assunto cada vez mais presente nos noticiários de TV, rádio, revistas, jornais e internet. Segundo a pesquisa “Imprensa e agenda de direitos das mulheres: uma análise das tendências da cobertura jornalística”, realizado pela ANDI – Comunicação e Direitos e pelo Instituto Patrícia Galvão, o tema da violência contra a mulher é o mais comum em relação a dois outros observados. Em uma amostra de jornais impressos brasileiros de circulação nacional e regional analisada, a violência contra a mulher representou 63% das matérias, trabalho e ocupação, 18,9%, e poder político e decisão, 17,8%.
A princípio um ponto positivo, é interessante ressaltar a análise da pesquisadora Juliana Doretto, uma das responsáveis pela interpretação da pesquisa. Para ela, “a preponderância das pautas sobre a violência contra a mulher vai ao encontro da hipótese de que este é um tema mais frequente na mídia, não apenas por sua importância social, mas também pelo aspecto sensacionalista que com frequência desperta. A espetacularização do crime pode ser uma forma de atrair leitores e aumentar as vendas, sobretudo entre os jornais regionais”.
Segundo a pesquisa, o tema é notícia nos seguintes casos: quando ocorrem casos reais de violência, em especial se for uma agressão cometida com motivação passional e extrema violência; uma mulher é agredida por um homem famoso; acontecem abusos sexuais de criança; uma mulher é condenada à morte por apedrejamento; vai a julgamento um acusado de assassinato de ampla repercussão; são presos integrantes de quadrilha que traficava mulheres e meninas para prostituição no exterior; é procurado ou preso um estuprador ou serial killer, entre outros.
Em bem menor proporção, a temática da violência de gênero também é notícia quando é divulgada alguma pesquisa com números impactantes, a exemplo de dados sobre denúncias à Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180; escassez de serviços de atendimento como Delegacias de Mulheres e Casas Abrigo; aprovação de leis sobre o tema; inauguração de um centro de atendimento ou quando uma autoridade toma medidas ou deixa de tomá-las com base na Lei Maria da Penha.
Questão de polícia e individual
A presença de abordagem policial que acaba resvalando no policialesco ainda impera na cobertura da violência contra mulheres, constata a pesquisa. Isso é um problema, porque a cobertura policialesca carece de contextualização e problematização.
Outra característica da cobertura é a individualização dos casos. “Esta é uma tendência do jornalismo atual, especialmente em temas que envolvem dramas humanos. Fatos ou histórias que retratem um caso real geralmente facilitam o entendimento de questões complexas por parte do leitor. Contudo, vale ressaltar o desequilíbrio entre o foco das matérias, que se limita ao individual – caso pessoal e/ou familiar –, e a dimensão pública do problema, que exige respostas de diferentes instâncias do Estado – Executivo, Judiciário, Ministério Público – e da própria sociedade”, assegura a análise dos dados feita pela jornalista Marisa Sanematsu.
Para ela, “mesmo após a Lei Maria da Penha ter entrado em vigor, a imprensa parece estar distante de abordar a violência contra as mulheres como um fenômeno complexo, multidimensional, e que, portanto, requer políticas públicas amplas e articuladas nas diferentes esferas, como educação, trabalho, saúde, segurança pública e assistência social”.
Em 80% das matérias analisadas, não são apresentadas denúncias, a legislação existente, como a Lei Maria da Penha, acordos e convenções internacionais cujo Estado brasileiro é signatário, nem as causas, muito menos soluções para o problema.
Um maior investimento da imprensa em reportagens, entrevistas com especialistas, artigos de opinião e editoriais ajudaria no entendimento das razões que levam à violência de gênero, até porque, segundo Sanematsu, a mídia é um espaço de debate e também de pressão, podendo ajudar a melhorar os serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência, no cumprimento da Lei Maria da Penha e em uma mudança cultural.
Outras características encontradas no trabalho jornalístico foram pouca voz dada a ativistas de movimentos sociais e especialistas da área acadêmica; rara menção a tipos de violência como a lesbofobia e a violência contra mulheres negras; ausência do agressor como foco central da notícia – como este se comporta frente à agressão, diante dos filhos, o que tem sido feito para deixarem de praticar tal crime ou seja penalizado –; os casos de impunidade; os desafios encontrados por profissionais de Direito e da Justiça na implementação da Lei Maria da Penha; as dificuldades das mulheres em denunciar nos serviços especializados. Ressaltando outra grande omissão: 96% das matérias não mencionam os serviços de denúncia ou atendimento existentes para a mulher vítima de violência, como o Ligue 180 e Delegacias de Mulheres.
Comparação internacional
Para conhecer uma outra realidade, o Jornal Mulier entrevistou o pesquisador Wladimir Cerveira de Alencar, bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca, na Espanha, membro do Centro de Estudos da Mulher na mesma instituição (CEMUSA). Em sua tese “Análise de discursos sobre a violência contra a mulher no Brasil e Espanha”, ele analisou a maneira como a imprensa escrita no Brasil e na Espanha aborda a violência contra a mulher, baseado em todas as notícias relativas a este tema publicadas no jornal “Folha de S. Paulo” e “El País” durante o período compreendido entre 2008 e 2010.
Segundo Alencar, uma das principais conclusões confirma o pouco destaque dado pela imprensa brasileira à questão da violência contra a mulher. Apenas casos mais famosos como, por exemplo, a morte de Eliza Samudio, a mando do goleiro Bruno, merecem mais atenção e espaço nos meios, justamente pela notoriedade de uma das partes envolvidas. “A violência cotidiana, envolvendo cidadãos comuns, e que esteja fora da possibilidade de exploração através de espetáculo midiático (como no caso da jovem Eloá), não recebe destaque adequado e, quando é abordada (poucos casos aparecem), recebe uma conotação normalmente restritamente policial e extremamente resumida (relega ínfimo espaço dentro do jornal), apenas descrevendo os fatos (muitas vezes sangrentos), parecendo mais ser um documento policial do que uma notícia jornalística”.
A imprensa denominada de massa, como no caso do jornal “Folha de S. Paulo”, com maior tiragem no Brasil, “até o momento não reconhece a importância da difusão pública de casos de violência contra a mulher como fenômeno social”, de acordo com o pesquisador. Além disso, “não agregam a essas notícias informações relacionando a morte de uma mulher por seu companheiro com a cultura machista e patriarcal brasileira. Em outras palavras, não explica aos leitores o que é a violência contra a mulher e as razões para sua ocorrência e tampouco incluem dados sobre as ferramentas de proteção existentes contra a violência de gênero na lei e demais políticas públicas de amparo às vítimas. Em suma, não se utiliza a notícia como instrumento de denúncia social quando se trata de casos de violência contra a mulher”.
Em comparação à imprensa espanhola, há diferenças, como observou Wladimir. O jornal analisado, segundo ele, rotineiramente traz notícias sobre o tema, mas relaciona claramente os fatos relatados com o fenômeno da violência contra a mulher, utilizando termos chaves para a identificação da população, como “violência de gênero”, “violência machista”, “maus-tratos nas relações entre casais”, etc. “Ainda que, importante destacar, não esteja em patamar de perfeição de abordagem, tendo em vista que frequentemente se percebe preferência por abordar os casos mais extremos e violentos e casos envolvendo imigrantes estrangeiros, por exemplo”, ressalta.
Para Wladimir Cerveira de Alencar, no caso brasileiro, a providência fundamental é dar voz às vítimas. “É preciso que os fatos relacionados à violência contra a mulher estejam mais frequentemente no texto jornalístico e com maior destaque” Também é preciso parar de associar o tema a uma abordagem meramente policial, incluindo no texto uma abordagem mais analítica e principalmente crítica destes fatos. É importante deixar claro “que as raízes da violência contra a mulher estão na desigualdade material entre homens e mulheres na sociedade, e que a mentalidade cultural do machismo lidera as razões para o cometimento deste ato”.
Outras duas questões precisam ser pensadas na cobertura dos meios de comunicação, assegura o pesquisador. “É preciso dar destaque não apenas aos casos mais extremos de morte, mas também a outras facetas da violência contra a mulher, como a agressão física, a moral, psicológica, econômica, etc. E creio, ainda, que falta a difusão das estatísticas de violência de gênero, atualmente temos diversas pesquisas sobre este tema no Brasil, mas poucas são divulgadas nos veículos de grande massa, isso ajudaria a população a compreender as dimensões reais do problema, que é muito maior do que se pensa”.
Fonte
VIVARTA, Veet (coord.). “Imprensa e agenda de direitos das mulheres: uma análise das tendências da cobertura jornalística”. ANDI; Instituto Patrícia Galvão. Brasília: 2011.
fonte: Jornal Mulier – www.jornalmulier.com.br.
0 Comentários