Há bons restaurantes tipicamente brasileiros em Brasília? Um de tradição, que passe incólume a tendências mercadológicas mas que ofereça pratos saborosos? Quando me perguntam qual o melhor, acabo por indicar uns basicões (Mangai, Ki-Mukeka, Paraíba Carne de Sol) ou as feiras: Galega & Buga (Ceilândia) ou o Pereira (Núcleo Bandeirante). No que tange à comida nordestina, sobretudo no árido cenário do Plano Piloto, contamos nos dedos os lugares de qualidade. Dona Graça Cozinha Nordestina é um deles.
Não há buchada como a da piauiense Graça Veras — à exceção talvez daquelas pessoas arraigadas demais, prontas a atestar sua receita de família como a melhor do mundo. Lembro aqui do saudoso Seu Amaro, pai dos amigos Aleomar, Leomara e Leonice, que se orgulhava tanto de seu preparo. Quando Amaro resolvia fazer buchada, os meninos saíam de casa pra não sentir o cheiro. E assim cresceu a minha geração: tapando o nariz para o bucho escaldando, para o pequi cozinhando…
Trata-se de um estigma da gastronomia brasiliense, forjada numa época em que a comida nordestina fora reduzida a refeição de retirantes e os restaurantes que tomavam as comerciais ofertavam culinária de influência francesa, portuguesa e italiana. Salvou-se a feijoada, prato legitimador de uma possível cozinha nacional.

 No Brasil, essa identidade culinária permanece ainda obscurecida pela colonização europeia, pela expansão da comida industrializada (que minou a imensa variedade de insumos e estrangulou a agricultura familiar) e, mais recentemente, pela gourmetização. O que conhecemos como gastronomia  típica desvanece da nossa mesa do dia a dia.
Dona Graça surge como um dos raros exemplares da culinária nordestina praticada com bom padrão. Ela trouxe o Piauí para dentro da selva de influências e sabores do mercado local, mantendo-se (na medida do possível) fiel à cultura da refeição nordestina, servida com generosidade dentro de panelinhas e com tempero muito bem pronunciado, carregado no colorau, traço da cozinha popular dos estados nordestinos mais ao Norte.
Antes de abrir os fundos de sua casa na Vila Planalto para um salão charmosíssimo com capacidade de 120 pessoas, decorado com móveis e mesas de madeira, cadeiras de palha feitas à mão e elementos retrô, Graça vendia marmita. E só chegou longe porque não abriu mão de suas raízes e nem do seu tempero.
Como quase todo brasiliense advindo da geração Coca-Cola, a ideia e a aparência de uma buchada me causavam imediato pavor. Isso acontece por vários fatores, incluindo preconceito e todo o apagamento histórico das culturas familiares, sobretudo do Nordeste brasileiro. Só o quebrei quando tive a disposição de me reaproximar a essas estruturas ancestrais."
A buchada de bode de Graça carrega toda a intensidade esperada de miúdos de caprinos. Como a cozinheira tem mão boa para temperá-la! Ficaria feliz em comer um prato desse bucho só com a farinha amarela caroçuda e um pouco de sua pimenta. Mas se você pedir no restaurante (às sextas), virá guarnecida de arroz soltinho, feijão de caldo espesso com toque de alho e grão sem despedaçar mais farofa e uma salada da casa meio sem graça (R$ 48,90, para dois).
Buchada de bode com acompanhamentos: intensidade e muito tempero


O cardápio apresenta sete opções de pratos, que mudam diariamente, em porções para duas ou três pessoas. Algumas presenças são mais constantes, caso da carne de sol com macaxeira (R$ 48,90 para dois), a grande decepção do menu. Carne mal dessalgada, macia, porém ressecada. Se for numa terça, prefira a dobradinha (mesmo preço).
Agora, os melhores dias para uma vista a Dona Graça são sexta e sábado (há um mês a cozinheira atendeu ao clamor do povo e estendeu o serviço para além dos dias da semana). Mas continua operando apenas no almoço, principal refeição dos brasileiros.
Na sexta, há feijoada completa (R$ 55,90), a belíssima buchada e a receita-destaque de seu repertório: cabrito macio descolando do osso ao molho de leite de coco com pirão (R$ 54,90), de chupar os ossinhos e lamber os dedos. Todos os pratos têm a companhia de arroz, feijão, salada e farofa, além de servirem bem a duas pessoas.
Aqui, como muitos restaurantes tradicionais da Vila Planalto, não há cultura de couvert e entradas. Acredite: você não precisa de mais nada para saciar-se e os pratos chegam muito rápido — facilidades do menu enxuto e da praticamente inexistente variação de guarnições de receita.
Para a sobremesa, não se paga nada para servir-se em copinhos descartáveis da pequena seleção de doces caseiros dispostos numa prateleira antiga. Doce de mamão raladinho, suave, sem pesar a mão no açúcar ganhou minha preferência. Mas a bananada também é saborosa com textura aveludada, e o doce de leite com pedacinhos de coco agrada.
Há rapadura da mais clarinha também para acompanhar o café (que bem podia ser um coadinho no lugar do expresso muito mal tirado). Depois de uma refeição como essas, de suar a testa e acalentar a alma, o momento da digestão é precioso e pede uma dose de Velha Januária (R$ 5,50), um dos 18 rótulos de cachaça disponíveis.
Quero frisar que se você que não come (ou nunca comeu) buchada e for se aventurar, saiba que a de Dona Graça não foi feita para agradar apenas tradicionalistas: o temperinho e aquele caldo do cozimento do clássico invólucro de miúdos picadinhos são capazes de converter os mais céticos.
Dona Graça Cozinha Nordestina
Rua 7, lote 15, Vila Planalto, (61) 3032-1062. De segunda a sábado, das 11h às 15h. Ambiente interno. Aberto em 1992