A Igreja do Diabo
Milton Hatoum 1 dia atrás
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Foi uma tarde sufocante, memorável e mística, aquela de 1978 no Pacaembu. Ou seria 1979? Não era futebol. Ali testemunhei um grande encontro de homens e mulheres, brasileiros sofridos que buscavam paz, saúde e prosperidade, e oravam em coro pelo Senhor.
No fim do dia, quando as sombras se alongavam, surgiram enormes sacos pretos de plástico, estufados de cédulas. Muitos sacos com milhares de notas pequenas e amassadas, e um futuro promissor.
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Ah, a eloquência daqueles oradores de voz troante! E a longa e ansiosa espera do rebanho pela voz do último orador, cuja aparição triunfal explodiu o estádio com gritos. Era o líder possesso, voz de tom ambíguo, violenta e providencial, estridente e reconfortadora. Recordei a voz de um poeta: “Vocês, oradores e panfletários que vociferam, não percebem que todo homem que grita finge que está gritando?”.
O editor da revista queria a matéria pronta antes das nove da noite, fiz anotações ali mesmo, entre os fiéis, e saí do estádio com uma sensação de que algo grave, terrível, poderia acontecer no futuro. Que intenção secreta havia naquela voz tão cativante e poderosa? Quanto desalento, para não dizer desespero, aquela multidão carregava como um fardo: o peso de uma dívida social, cultural, econômica, o diabo a quatro...
Ou melhor, a Igreja do Diabo: o conto do Bruxo, que é também uma fábula moral, sem moralidade. Essa história machadiana é um primor de ironia, e toca no fundo de nosso tempo e de todos os tempos, desde que o demônio apareceu em nossas vidas.
“Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja.”
Depois dessa abertura marota, o narrador de Machado enumera as artimanhas do demônio. Primeiro, a máscara: o Diabo se disfarça em monge beneditino e vai pregar aos homens de bem, que acreditam na providência divina. A pregação é um inventário de coisas negativas: combateu “o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade”; não proibiu a “calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie”.
Os conselhos desse demônio fantasiado de monge parecem vir da origem dos tempos até nossos tristes dias. Por exemplo: dar ao próximo indiferença – e, em alguns casos, ódio e desprezo. Isso porque “o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição”. Mas é permitido “amar as damas alheias”, um amor singular, porque era “o amor do indivíduo a si mesmo”. Na conversa com o Senhor, quando este conta que um velho acabara de chegar ao céu por ter feito um ato piedoso, o Diabo replica: “Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega”.
O espírito que nega todas as “virtudes aceitas” e as substitui por outras, “que eram as naturais e legítimas”. A principal delas é a inveja, “origem de prosperidades infinitas”. Uma “virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento”.
Até hoje, o Diabo tem sido – e talvez seja por muito tempo – uma das figurações mais poderosas de algumas seitas. Ele é combatido e exorcizado por vozes ferozes em orações e shows delirantes. Mas, sem a crença no demônio, como arrebanhar fiéis? É preciso inventar um inimigo terrivelmente diabólico. Sem isto, não há rebanho e, sem a multidão de fiéis, não há retribuição pecuniária nem venalidade.
Nas palavras do Diabo machadiano, a venalidade “era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório”.
Sábias palavras do Diabo na pena do Bruxo. Como derrotar o demônio, se a presença dele (ou sua figuração) tem de ser justificada para combater o mal?
Anos depois, o Diabo notou que “muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes”. A reincidência das virtudes desnorteou o Diabo, que “mal pôde crer tamanha aleivosia”. Inconformado, ele foi tirar essa teima com Deus, que o ouviu com “infinita complacência” e “não triunfou, sequer, daquela agonia satânica”.
As últimas palavras de Deus ao pobre Diabo são estas duas frases tão machadianas e tão atuais: “Que queres tu? é a eterna contradição humana”.
A mensagem moral dessa fábula (ou antifábula) é a própria contradição humana. A maldade, a crueldade e o charlatanismo sempre existiram e existirão, mas o reinado do mal não é eterno.
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