Leia um trecho inédito de A Vantagem Humana, livro da neurocientista Suzana Herculano-Houzel que será lançado em outubro

Escola de culinária: o número de neurônios só foi alcançado porque nossos ancestrais aprenderam a cozinhar. Viramos o Homo culinarius | Matthew Eisman/Getty Images /
O ser humano é impressionante. Nosso cérebro é sete vezes
maior do que o esperado para o tamanho do nosso corpo e leva um tempo
extraordinário para se desenvolver. Nosso córtex cerebral é o maior em relação
ao tamanho do cérebro como um todo, e sua parte pré-frontal também é a maior. O
cérebro humano, isoladamente, consome uma quantidade tremenda de energia: 25%
das calorias necessárias para que o corpo funcione durante um dia. Ele se
tornou enorme no decorrer de um brevíssimo tempo na evolução e deixou para trás
nossos primos, os grandes primatas, como o gorila e o orangotango, com seu
cérebro minguado e com o tamanho de apenas um terço do nosso. Então o cérebro
humano é especial, certo? Errado. Nosso cérebro é notável, sim, mas não
especial no sentido de ser uma exceção às regras da evolução. No entanto, parece
que temos o cérebro mais capaz do planeta, aquele que explora outros cérebros
em vez de ser explorado por eles. Se nosso cérebro não é uma singularidade
evolutiva, onde está a vantagem humana?
Para entender a vantagem humana, é necessário ver o cérebro humano à luz da evolução e das novas evidências que sugerem uma nova explicação para o que torna únicas nossas habilidades cognitivas: nosso cérebro suplanta o de outros animais não porque somos uma exceção à evolução, mas porque, por simples razões evolucionárias, temos o maior número de neurônios no córtex cerebral, algo que nenhuma espécie atingiu. A vantagem humana reside, primeiro, no fato de sermos primatas, e por isso temos um cérebro estruturado segundo regras de proporcionalidade muito econômicas, graças às quais um grande número de neurônios cabe em um volume relativamente pequeno em comparação com outros mamíferos. Em segundo lugar, somos a espécie primata que se beneficiou do fato de que, há 1,5 milhão de anos, nossos ancestrais inventaram um truque que permitiu a seus descendentes ter um crescimento rápido e, dentro de pouco tempo, um número enorme de neurônios corticais, até agora sem rivais em outras espécies: o truque de cozinhar. Em terceiro e último lugar, graças à veloz expansão do cérebro possibilitada pelas calorias adicionais obtidas com o cozimento dos alimentos, somos a espécie que possui o maior número de neurônios no córtex cerebral — a parte do cérebro responsável por descobrir padrões, raciocinar de modo lógico, prever o pior e preparar-se para lidar com ele, criar tecnologia e transmiti-la por meio da cultura.
Suzana Herculano-Houzel: em 2009, ela publicou um trabalho
revolucionário demonstrando que o cérebro tem 86 bilhões de neurônios | Leo
Pinheiro/Valor/Agência o Globo
O HOMO CULINARIUS
Não costumamos nos ver como animais. Entretanto, somos
primatas, e comparar-nos com outros primatas no que diz respeito às nossas
necessidades de energia pode ser muito esclarecedor quanto à nossa história
evolutiva. Se gorilas e orangotangos vivem no limite do número de neurônios
cerebrais e massa corporal que os primatas podem ter, nós, humanos, nem sequer
deveríamos existir. Isso porque os 86 bilhões de neurônios de nosso cérebro e
nosso corpo exigiriam que dedicássemos mais de 9 horas diárias a encontrar e
ingerir alimento.
Obviamente, procurar alimento e comer durante tanto tempo é
algo que não fazemos todo santo dia nem teríamos condições de fazer. E nossos
ancestrais também não. Mas como nossos ancestrais conseguiram ter condições
para arcar com o crescente número de neurônios? Um dos aspectos característicos
e mais notáveis da evolução humana é que o encéfalo das espécies Homo aumentou
muito e com rapidez extraordinária — quase triplicou de tamanho durante o
último 1,5 milhão de anos — enquanto os encéfalos dos grandes primatas
estagnaram no mesmo tamanho que possuem até hoje. Seja lá o que foi que mudou
que permitiu que os encéfalos do homem, e só do homem, aumentassem tanto e tão
depressa, deve ter sido algo que fez essa restrição energética deixar de
existir.
Existem quatro modos de contornar uma restrição energética
ao número de neurônios no cérebro: (1) diminuir o tamanho do corpo; (2)
diminuir o custo energético do cérebro; (3) obter mais energia gastando ainda
mais horas diárias em alimentação; (4) aumentar de algum modo a energia obtida
com a mesma quantidade de alimento — por exemplo, com uma mudança radical na
dieta.
As três primeiras alternativas podem ser descartadas. O que
nos restou foi contornar uma restrição energética mudando a dieta para obter
mais calorias no mesmo período de tempo ou até em menos tempo. Quando nossos
ancestrais começaram a ganhar um cérebro muito maior, já haviam se tornado não
só coletores mas também caçadores — e caçar, por sua vez, deve ter exercido uma
pressão seletiva por mais neurônios cerebrais, pois requeria mais cooperação, memória,
planejamento, raciocínio, autocontrole, noção do estado mental dos outros
caçadores, comunicação por alguma espécie de linguagem: habilidades corticais
que se baseiam acentuadamente nas funções associativas de um córtex
pré-frontal. Ao disponibilizar mais energia, a transformação em
caçadores-coletores provavelmente pôs nossos ancestrais no caminho de ganhar um
número maior de neurônios e ter condições de sustentá-los.
Competição de robôs: a alta capacidade cognitiva
possibilitou ao ser humano alterar o mundo à sua maneira | Alex Gallardo/AP
Photo/Glow Images
No entanto, isso tudo aconteceu entre 4 milhões e 1,5 milhão
de anos atrás, um período no qual a massa encefálica cresceu apenas
ligeiramente nas espécies da nossa linhagem. Um aumento radical e súbito no
tamanho do encéfalo, como o visto na evolução do Homo, deve ter requerido uma
mudança igualmente radical e súbita no aporte calórico. Um modo de obter esse
tipo de mudança — conseguir mais calorias no mesmo intervalo de tempo — é um
velho conhecido nosso. Existem boas evidências, cada vez mais numerosas, de que
ele já era usado há 1 milhão ou talvez até 1,5 milhão de anos, na época em que
o tamanho do cérebro humano começou a crescer rapidamente. É a transformação de
gêneros alimentícios — uma pré-digestão fora do corpo, antes de o alimento
chegar à boca — conhecida como ‘cozinhar’.
Cortar, bater, esmagar ou amaciar os alimentos por algum
outro método antes de mastigá-los também é ‘cozinhar’, no sentido menos
restrito de preparar o alimento em vez de comê-lo in natura. Cozinhar, nesse
sentido mais abrangente, é algo que os primeiros Homo e até seus ancestrais
caçadores-coletores já faziam — e algo que os ancestrais dos grandes primatas
não humanos nunca fizeram. Mas essas formas primitivas de cozinhar não são nada
em comparação com o número de calorias proporcionado pela técnica mais apurada:
cozinhar com fogo. Cozimento saudável, rápido e eficiente: Transforme suas
receitas em uma experiência única com o sistema de cozinha da Royal Prestige. Patrocinado
Cozinhar, ou algum modo de aumentar o aporte calórico dos
alimentos, não foi simplesmente um bônus, uma vantagem acessória para o homem
pré-histórico, e sim um requisito essencial para que seus cérebros se tornassem
ainda maiores. Assim que o Homo se libertou das restrições energéticas impostas
pela dieta crua, o tamanho do encéfalo aumentou rapidamente. Nossos ancestrais
nunca divergiram da regra de proporcionalidade de neurônios dos primatas; eles
apenas conseguiram continuar avançando em direção a ganhar mais neurônios, um
número muito maior do que aquele ao qual os outros primatas estavam e ainda
estão limitados em razão de suas dietas cruas. Não havia outro modo para o
encéfalo humano se destacar, salvo uma mudança radical no aporte calórico. E a
invenção da cozinha permitiu exatamente isso.
Ao mesmo tempo que aumenta o rendimento calórico dos
alimentos, o cozimento reduz o tempo necessário para obter essas calorias,
simplesmente porque é preciso mastigar muito menos para transformar o alimento
em uma pasta macia o suficiente para ser engolida. Sobra mais tempo para fazer
outras coisas com todos os neurônios que se tornam mais fáceis de sustentar. É
fácil imaginarmos uma espiral ascendente, na qual a seleção natural favorece
números maiores de neurônios, porque os indivíduos que os possuem têm uma
vantagem cognitiva e agora dispõem de mais tempo para usá-los em caçadas, na
busca de melhores habitações e nos cuidados voltados para o bem-estar de seu
grupo, protegendo seus membros e transmitindo conhecimento sobre onde há comida
e abrigo.
Toque para ampliar
Resumindo uma história de 2 milhões de anos, a invenção da
cozinha fornece a explicação mais simples sobre como os humanos puderam, em
pouquíssimo tempo, livrar-se da limitação de comer alimentos crus e, graças ao
número maior de neurônios que eles agora podiam sustentar, plantar o próprio
alimento, colhê-lo e distribuí- lo em mercados, criar civilizações inteiras ao
redor dessas atividades, estabelecer cadeias de distribuição, supermercados, eletricidade,
refrigeradores e ‘alimentos industrializados’ enlatados, congelados ou
desidratados, que podem ser armazenados por tempo indefinido e estão
prontamente disponíveis para consumo. Esse processo teve fases ruins, é claro.
Fomes coletivas foram comuns, em parte porque a própria transição para a
agricultura reduziu a diversidade dos alimentos e deixou os humanos à mercê de
pragas, secas e guerras. No outro extremo, a culinária industrializada retirou
tanta água daquilo que comemos que transformou os alimentos prontos em bombas
calóricas.
Então o que nós temos e nenhum outro animal tem e que
explica nossa vantagem cognitiva? Um número notavelmente grande de neurônios. E
o que nós fazemos e nenhum outro animal faz que nos torna humanos? Esqueça
enganar, raciocinar, planejar, contar, usar linguagem — outros animais podem
fazer essas coisas, pelo menos em certa medida. Nós cozinhamos o que comemos:
essa é a atividade exclusivamente humana, a que nos permitiu pular o muro
energético que ainda tolhe a evolução de todas as demais espécies e nos põe num
caminho evolutivo diferente do de todos os outros animais. Como disse o autor
Michael Pollan na revista
Smithsonian: ‘Claude Lévi-Strauss e Brillat-Savarin consideraram a cozinha uma metáfora da nossa cultura, mas ela não é uma metáfora, é uma condição prévia’. Portanto, agradeçamos a nossos ancestrais Homo culinarius pelos nossos neurônios e tratemos a cozinha com o devido respeito. Eu agora faço isso, com certeza.”
Smithsonian: ‘Claude Lévi-Strauss e Brillat-Savarin consideraram a cozinha uma metáfora da nossa cultura, mas ela não é uma metáfora, é uma condição prévia’. Portanto, agradeçamos a nossos ancestrais Homo culinarius pelos nossos neurônios e tratemos a cozinha com o devido respeito. Eu agora faço isso, com certeza.”
exame.abril.com.br
0 Comentários